Palácio da Rainha - Vallorian Reins

Katrina estava contemplando um relógio que chegava a caber em sua mão de tão pequeno. As janelas bem desenhadas na parede exibiam a cidade lá fora: linda, movimentada e azul; tudo corria bem - mas a garota tinha os olhos fixos no relógio; no ponteiro maior dando várias voltas e, ora ou outra, o menor se mexendo. O barulhinho do tic toc ecoava em seus ouvidos e enchia sua mente, e, o que era incrível, ela estava suando - suando na água!
Até que, para despertar-lhe de seu transe, a porta do grande Salão do Trono se abriu com um rangido.
O relógio caiu no chão, seu coração agora batia forte e a respiração era acelerada: ela ansiava e desejava com todas as forças que Emily Hearls entrasse no cômodo - depois de passar muito tempo com a rainha, ela se tornara quase que uma mãe para Katrina, que temia perdê-la assim como foi com sua mãe biológica.
Um homenzinho baixinho e rechonchudo entrou às pressas no salão, andando com passos rápidos e ritmados pelo tapete esverdeado que ia da porta, passando pela escadaria de mármore, até o trono da rainha e um outro pouco menor, feito sob medida para a garotinha, que ali estava sentada. Logo atrás do homenzinho, vinham dois tritões segurando lanças de metal que usavam mantos azul-marinho e cintos dourados.
Katrina enrigeceu o corpo; o homem baixinho era um dos mensageiros da mestra da água, e ela sabia que coisa boa não podia ser.
- O que foi agora, Laef? O que aconteceu com ela? Por que a demora? - ela se apressou a dizer, apertando seu bastão de uma água que se distinguia das demais que enchiam o mar.
Laef ajeitou seu bigode, ergueu um pergaminho sem danificações por estar em contato com a água, limpou a garganta com um pigarro e leu:

Katrina, houveram imprevistos em minha viagem e eu tardarei um pouco mais para voltar.
Até minha volta, você está em comando de Vallorian Reins.
Desculpe-me pelos transtornos.
Amor, Emily Hearls.

Em seguida, o mensageiro dobrou o pergaminho escrito em letras corsivas e bem caprichadas e enfiou-o no bolso da túnica. Fez uma breve reverência e, com um rodopiar de calcanhares, seguiu até a porta do salão, que se fechou num baque ao sair.
Agora sozinha, ela levou a mão livre do bastão até o cenho franzido e coçou uma das sobrancelhas, meditando sobre tal ideia.
- Rainha Katrina Hëikkinen - murmurou para si mesma, com um sorriso zombeteiro e ao mesmo tempo sério. - O que você quer fazer primeiro? - indagou para o vazio, pensativa.
A jovem se pôs de pé e caminhou com leveza até a primeira grande janela do salão. A cortina bailava na água, tendo um aspecto encantador. Ela olhou para a rua lá fora, em seguida abriu um sorriso satisfatório: o que quer que vira, lhe alegrou e lhe deu uma ideia.

- Herrick! - ela chamou pelo Mordomo, que apareceu na porta do Salão do Trono em questão de segundos.
Herrick era o mais velho Mordomo do palácio. Tinha o cabelo branco e um bigode com as linhas bem desenhadas do mesmo tom.
- Sim, madama? - indagou o Mordomo apressando o passo até a janela em que Katrina estava apoiada.
- Estou no comando de Vallorian Reins, de acordo com a Em... - afirmou, com um sorriso maroto delineado no canto dos lábios.
- Sim - Herrick concordou, retribuindo com o mesmo sorriso. Apesar de já ter atingido os setenta anos, o velho era aventureiro e sempre participava das peripécias de Katrina. - Qual é a invenção da vez, madama?
- Quero que mande o General Krutchs selecionar os vinte melhores soldados. Um torneio - ela ergueu uma das sobrancelhas numa careta perversa, depois levantou o indicador na altura do rosto, mostrando que ainda não havia acabado de falar. - E, o finalista lutará comigo.
- Muito sábio, madama - concordou o velho, e, num sorriso, deu meia volta e seguiu a passos duros e curtos, mas rápidos, até a porta, que se fechou num estrondo.
A garotinha apertou seu bastão e, de mandíbula flexionada e um olhar desafiador, andou até um dos pilares que exibia a figura de Ajihad, primeiro líder de Vallorian Reins, e passou a observá-lo com admiração.
Uma hora mais tarde, ela permanecia na mesma posição. A porta tornou a abrir e Herrick voltou segurando um pedaço de pergaminho escrito as chaves do torneio, que indicava qual soldado lutaria com qual. Katrina sorriu com aprovação, puxando o pergaminho das mãos do Mordomo para enxergá-lo com clareza.
- A armadura que você gosta está em sua cama - avisou o velho.
- Não seria justo apelar para armaduras para lutar com eles - respondeu com desprezo e arrogância na voz.
O mordomo concordou com a cabeça; um sinal vertical, positivo.
- Hum-hum, agora apresse-se. O torneio já vai começar. Todos estão esperando em Vandens Latihan Röna.
- Não, quero que o torneio aconteça no Salão de Festas - o Mordomo a olhou com curiosidade, mas ela pegou uma de suas mãos e lhe confortou com um sorrisinho falso por baixo da máscara de meiguice - Confie em mim, Herrick. Sei o que estou fazendo.
- Se é o que você ordena... - murmurou enquanto se retirava, pensando em onde aquilo iria parar.
- Espere, Herrick. Quero que vá à cidade e me traga um noivo da minha idade. - O Mordomo arregalou os olhos com perplexidade e ela continuou numa vozinha mais baixa: - Noivo de brincadeirinha. Mas quero que pensem que é de verdade.
- Certo - e fechou a porta.
Quando o Mordomo voltou com o noivo de brincadeirinha, Katrina na mesma hora forjou alianças de água e passou uma delas pelo dedo anelar do companheiro: - E eu declaro você, sr. Não-Sei-Seu-Nome, o meu marido.
O menino a encarou com uma das sobrancelhas erguidas, confuso.
- Você é mesmo Katrina Hëikkinen? - ele fez cara de surpreso, vincando as sobrancelhas.
- Sou, ué. - respondeu indiferentemente.
- Quem te deixou beber desse jeito? - indagou, zombeteiro.
- Não estou bêbada, isso é sério. Você vai me ajudar a irritar a Emily fingindo ser meu marido. Casamento de mentirinha, dã - ela respondeu rudemente, revirando os olhos nas órbitas.
- E eu te declaro minha esposa - concordou o rapaz, abrindo um sorriso encantador enquanto enfiava a outra aliança no anelar da princesa. - E a propósito, sou Cole.
- Certo, Cole. Agora, vamos - ela puxou o garoto pelo braço pelo tapete verde, abriu a grande porta e passou pelo corredor. Cole ficou encantado com a quantidade de portas, e, quando achou que o corredor não teria fim, finalmente pararam.
Katrina girou a maçaneta de ouro e adentrou o grande Salão de Festas, com um semblante todo corajoso.
Cole arregalou os olhos, o salão estava lotado de soldados e, num circulo desenhado mentalmente no chão, estava a arena improvisada. O casal permaneceu imóvel na porta, enquanto as horas passavam depressa; vários soldados tombavam, enquanto outros, gargalhavam de vitória. Então, outros dois entravam na arena, e um se tornava vitorioso e outro perdedor. Katrina não deixava o "marido" fazer perguntas, só o obrigava a focar os olhos na batalha sangrenta.
Finalmente, chegou a vez da garotinha. Katrina ordenou que Cole esperasse, enquanto se dirigiu ao círculo imaginário e fixou seus olhos no oponente.
Era um homem corpulento e aparentemente bruto, duas veias pulsavam loucamente em sua testa. Sua cara estava vermelha-pimentão, mas ele relaxou no momento em que viu Katrina.
- Acalme-se, garotinha. Vou pegar leve - garantiu.
- Não será preciso - ela murmurou com desprezo em resposta.
Num movimento ágil, ela saltou sobre o homem - tais habilidades só funcionavam dentro da água, onde ela possuía agilidade sobrehumana - e, com um giro, acertou-lhe por trás com um soco, sua mão estava revestida com duas camadas de água, a segunda camada com espinhos superpontudos. Os espinhos perfuraram as costas de seu oponente, que se virou num movimento bruto e, com um rugido, tentou derrubá-la.
Katrina, porém, foi rápida e golpeou-o no ombro com outro soco. Com o ombro sangrando, o homem caiu de joelhos, grunhindo furiosamente.
- Pirralha insuportável! - cuspiu.
Ofendida como insulto do soldado, deslizou a segunda mão até o pescoço vermelho desde, e, com um murmurar de palavras na língua antiga - Üt postga ysabmund ijauth ütg öknrowa! Ishdä! -, o soldado começou a tomar uma coloração arroxeada, pois dois "fios" de água que pareciam mais de nílon foram transpassados por seu pescoço e começaram enforcá-lo.
- Páre! Vai matá-lo asfixiado! - gritou o General Krutchs.
Um bum! fez todos pararem o que faziam para olharem para a porta do Salão de Festas. Katrina parou de apertar os fios contra o pescoço do soldado para olhar também. A porta se escancarou, e lá estava Emily Hearls.
No mesmo instante, Hëikkinen tratou de puxar Cole na platéia e fingir um beijo - pois colocou a mão na frente, num ângulo que não era possível a rainha ver. Em seguida, voltou seus olhos para a porta, lançando um olhar diabólico à mãe, que a encarava furiosíssima.

Katrina revirou os olhos e deu um passo à frente, ignorando totalmente a presença de Cole. Ela rodopiou o indicador, em seguida, uma rajada d'água impactou o braço de Emily para trás, pois lhe barrava a passagem.
- Com licença, Vossa Alteza - murmurou com ironia na voz.
Emily continuou séria quando tomou a dianteira, guiando Katrina e Chadawon pelo longo corredor. Eles pararam em frente à uma das portas de mármore e elas se abriram com uma simples torção de pescoço da rainha.
O cômodo era bem mobiliado e cheio de decorações de ouro. Ao centro, estava um tapete oval com duas poltronas de vime. Perto da parede, uma cama pouco maior que de solteiro mas menor que de casal e uma mesinha de cabeceira com um abajúr de estilo exótico. Era o quarto de Katrina.
A garotinha jogou-se numa das poltronas e passou a encarar Emily novamente e em seguida, voltou-se para Chadawon.
- Quem é ele? Seu namorado? Vocês se beijaram? - e começou a encher a mãe de perguntas, cada uma mais encherida que a outra. - Era na casa dele que você tava? Ninguém me conta mais nada aqui! - Concluiu por fim.
- Ele é só um amigo - respondeu Emily tentando manter a paciência.
- Ótimo - ela ditou brevemente, mesmo tendo noção de que ali tinham segredos.
Ela abriu um sorriso malcriado e arrogante, enquanto ordenava para Chad:
- Nesse caso, saia. Não vê que isso é assunto familiar? E parece que você não faz parte da família... - Katrina correu os olhos pelo quarto até chegar em Emily novamente, o sorriso ainda estampado entre os lábios - Ou faz, Emily Hearls? - indagou, dando ênfase em certas palavras.

- Ah, então vocês são mesmo namorados... - deduziu com ironia ao ouvir Emily defendendo Chadawon.
Cruzou os braços na altura do busto e levantou-se da poltrona de vime num salto. Em seguida, começou a passear pelo quarto. Sua cara foi tomando um tom pálido, mas ao mesmo tempo de um semblante furioso a medida em que ela se virava na posição oposta a do casal.
De repende, girou seu corpo na direção de Emily novamente; lágrimas - dessa vez, não forçadas - escorriam por sua face. Lágrimas de raiva e tristeza juntas numa só. Ela passou as costas das mãos em baixo dos olhos para tentar enxugá-las, e, numa expressão decidida, bradou:
- Ótimo, então! Eu vou embora! Fica aí com esse seu namoradinho, boa sorte pro casal!
Logo, ela mirou os dedos no guarda-roupa da parede, e suas vestes preferidas saíram "flutuando" e foram encaixadas perfeitamente numa saca de couro. Assim como as roupas, a saca veio até sua mão esquerda, enquanto, com a direita, ela passou a empunhar seu bastão que apareceu devagar na água, como se estivesse lá o tempo inteiro só que invisível e agora perdesse a transparência aos poucos.
Katrina flexionou o maxilar, os olhos semicerrados em Chad. Ela praguejou mentalmente, desejando que algo muito ruim acontecesse ao mestre da terra, mas ainda assim com um pingo de compaixão em respeito à Emily.